Crónica de Licínia Quitério | Anos 50 do século XX

Crónica de Licínia Quitério

 

De ontem e de hoje – Anos 50 do século XX
por Licínia Quitério

 

Em Lisboa, no 34 da Avenida da República, viviam as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam na grande cave do prédio que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas de alçapão, abertas e fechadas com o auxílio de uma vara  comprida com um gancho engenhosamente colocado numa das extremidades. De alguns sítios estratégicos da casa podia-se avistar, lá muito em cima, os trolleys dos eléctricos, aqueles carros maravilha que deslizavam, velozes mas tranquilos, pela cidade fora, subindo e descendo colinas.

A grande casa pobre, com cheiros de alfazema e de sabão de amêndoa, era um porto de abrigo. Ali se hospedavam, a troco de nada, todos os que precisavam de permanecer por mais de um dia na cidade. Eram as consultas médicas, as visitas aos familiares hospitalizados, que não havia o socorro necessário na pequena vila. Eram os exames, nas escolas, nos liceus, que só na cidade podiam ser feitos. Era até um emprego novo, coisita sem importância, à experiência, podia ser que se conseguisse. Fica-se ali o tempo que for preciso, a ver onde param as modas. Há sempre um colchão, um divã, umas mantas de trapinho tricotado, tudo muito asseado. As velhas amigas servem há muito em casas de ricos que lhes permitem o acesso aos restos: comida, fatos fora de moda que foram dos meninos, brinquedos amputados de peças. E desses restos há ainda restos para os outros pobres que por ali acostam. Uns calções do menino Nuno, em  bom estado, assentam a matar no Zé Manel que só tem dois pares e tão coçados que no cheio das pernas mais parecem renda. Uma gabardina, esta do Senhor Engenheiro, um homenzarrão, talvez sirva ao Ludovino que é tão grande como ele, mas tem a alma muito maior. Entregam um embrulhinho, pedem o favor de o fazer chegar à Lurdes Cigarra, coitada, com tantos filhos e o homem sempre doente. Até à próxima. Os abraços são de aconchego, os beijos repenicados. Há uma festa na cabeça do miúdo. Como ele cresceu. E bonito, benza-o Deus.

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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